exemplares a venda (tiragem limitada)
Texto de Mônica Rodrigues (atriz, diretora e mãe)
terra revirada: do curta ao tríptico
“de tudo que é nego torto, do mangue, do cais, do porto, ela já foi namorada”
(Chico Buarque)
Érica Pereira Farias
Inventasse eu mil modos de dizer seu nome, ‘inda’ assim não chegaria à um terço de sua excelência. Sua exuberância.
Érica Pereira Farias foi uma artista periférica, atriz, performer, mãe, escritora, que teve sua vida interrompida aos 33 anos de idade. Durante 18 anos dos seus 33, fomos parceiras de quase tudo na vida. Companheira inseparável de numerosas criações, incluindo ser madrinha do meu primeiro filho. Espetáculos, mostras de teatro, intervenções urbanas, saraus e mais saraus, ativismo artístico, escolas, pesquisas, cursos, exposições, partilha de bens culturais, varando São Paulo de ponta a ponta, em meio à precariedade e às lutas pela sobrevivência.
Érica Pereira Farias, moradora do Campanário, em Diadema, foi a maior especialista que já conheci na vida, sobre Dostoiévski. Não havia livro, curso, artigo sobre o beberrão de São Petersburgo que ela não devorasse, aprofundasse, e cujos conteúdos, depois, transmitia aos seus, em generosas aulas (nunca pagas). Seu coração pulsava junto aos enjeitados, os tortos, os epiléticos, os ditos loucos. Érica expandida, nunca teve problemas de se dirigir ao mais purulento dos corpos ou ao mais endinheirado dos sujeitos. Bem sei que jamais hei de ter essa grandeza. Érica ilimitada - conseguia ver humanidade até mesmo nos exploradores, nos detentores dos meios de produção, e do poder.
Coração-diamante, como eu a chamava. Uma senhora responsabilidade carregar um coração desses entre os destroços da cidade. Por meio dele, cantava, deslizando nas brechas de poesia que ainda havia, ou criando-as quando nada existia. Quando Érica declamava um poema, o ar da sala mudava. Quando Érica entrava em cena, os pulmões ficavam em suspenso. Era assombroso, era perturbador. Feroz e doce, quase insuportável. Menina, medusa e Pombagira. Uma gargalhada que roubava seu espírito num átimo, numa girada de saia, num gesto parado no ar por mais tempo que o habitual. Antes da internet. Antes da câmera digital. Lutando contra o esquecimento que cerca as produções e artistas periféricas, e contra a grande sombra que, anos mais tarde, encobriria teu nome.
Um corredor no meio do caminho
Quando o convite de Pedro Padosan chegou, para auxiliar na direção de elenco de um curta-metragem, eu tinha lá minhas dúvidas se seria capaz. Sobretudo capaz de transpor para o audiovisual as minhas técnicas, conhecimentos e excelência que eu facilmente conseguia acessar através do teatro. No entanto, Pedro me deu carta-branca & amarela pr’eu fazer o que eu quisesse com os atores. Hehehe... era tudo que eu queria. Respeito à minha inteligência, minha história e dignidade intelectual. Nunca partilhei do sentimento de sadismo que muitos diretorxs, sobretudo homens, possuem ao dirigir outros corpos. De fato nunca entendi: donde vinha essa necessidade bizarra de sujeitar os outros, primeiro por um convencimento geralmente brutal e agressivo da suposta superioridade de suas idéias, e depois, através de dispositivos humilhatórios convenientemente chamados de “exercícios”, “laboratório”, tudo em nome de um suspeitíssimo rebuscamento estético.
Nesses idos, a autonomia que Pedro me concedeu já respirava os ares frescos da confiança mútua e da maturidade profissional, o tipo de pessoa que se te convidar pra pular no abismo, você pula de olhos fechados, sem lubrificante. Podia eu então propor as mais insólitas investigações interpretativas, sabendo que o terreno era propício aos delírios e com a escuta sem julgamentos.
Após Pedro compartilhar e debater comigo uma pequena batelada de referências artísticas, começamos os encontros intensivos com o elenco.
Na contramão das facilidades, lutávamos contra o bichinho da descontinuidade e do esquecimento. Isso porque sabíamos que os corpos dos atores são todos os dias assaltados pela corrida incansável do pão. Na luta contra este massacre diário nos corpos, entre um busão e outro, boletos e afins, pretendíamos dar ao material poético de cada um a chance de nascer, de berrar, antes de ser apagado, esquecido, esmagado, pela samsara das obrigações e contas.
Farias foi a pessoa que mais se dispôs a isso, a combater o bom combate, carregando a pesquisa entre dentes e cabelos suados. Progressivamente alimentou sua experimentação, se encarregando sempre de compartilhar as descobertas estéticas e filosóficas com a equipe.
Os ensaios, carregadíssimos de densidade dramática, se intensificaram ainda mais à medida que o roteiro passou a agir como uma cartografia poética das tensões corpóreas, e não como um esquema a ser “analisado”, seguido, na reprodução mecânica das falas.
O fim de semana da filmagem chegou, e com ele, as situações-limites do elenco. Co(r)pos que transbordam, as feridas abertas e seus líquidos, o abjeto recheando o lanche dos intervalos, a síncope e a exaustão. Visualizações: o ator que pintou o cabelo sem autorização do diretor, que chegou sendo recebido no esculacho e teve que se trancar no banheiro para pintar urgentemente as madeixas ralas, atrasando a produção. A atriz que fumava 5 cigarros entre suas duas únicas falas. O ator que “travou”, repetindo roboticamente, e de maneira idiotizada uma determinada cena, e que foi jogado na água gelada para despertar os nervos e a loucura. A névoa de fumaça no set. Unhas roídas de Pedro. O estado febril de Érica. A manga chupada como jogo teatral excitando os corpos. O olhar fulminante de Érica. A delicadeza e perfeição gestual de Érica. A gargalhada visceral. O cheiro de buceta. Rústica e santa. A liberdade, o alcance e a generosidade de Érica. A Érica.
Intermezzo e via crucis
Durante anos Pedro carregou a cruz de seu trabalho. Já foi dito aqui o tipo de labuta específica aos artistas da periferia para resistir e existir.
Além disto, outro rolo compressor suprimiu boa parte do seu material compilado, dos ensaios gravados, das fotografias, tudo. Mais de 90% carbonizado no forno da apropriação cultural indevida, do ônus e danos materiais imensuráveis (por um integrante da equipe). Nenhum parto dói mais do que aquele que não aconteceu.
A via crucis do tríptico fotográfico havia começado, embora Pedro (e Érica) jamais soubesse que já estava experimentando na carne o confronto contra o esquecimento. Foi um hiato perverso e doloroso, em que foram seqüestradas a poética de Pedro, a vivacidade de Érica, a sustentação contundente da minha experimentação performática junto aos atores. Padosan já estava quase jogando a toalha, desistindo de reafirmar essa trajetória através da preciosidade dos registros.
a Valsa imprevista
Até que Érica valsou. Esvoaçou. Valsou até se confundir na bruma densa.
Pedro, atado por um fio de birra à esse material, insistiu ainda uma última vez, das inúmeras tentativas, de recuperação dos prejuízos, com muito investimento financeiro e afetivo envolvido.
9 anos depois. Centenas de horas perdidas. O mergulho profundo dos suores compartilhados. Do Acaso para o ineditismo, o tríptico “Uma valsa para Érica” nasceu, de uma gravidez muitíssimo desejada, interrompida várias vezes, por fim retomada, e chegando à fase expulsiva com três imagens violentamente potentes e abrasadoras.
Érica e eu, sempre fomos leitoras compulsivas de Nelson Rodrigues, e já havíamos montado vários espetáculos a partir de sua obra. Érica amava com adoração o texto intitulado “Valsa n 6”. Nesta peça teatral, uma jovem morta, suspensa num não-espaço após a morte, revisita os estilhaços de sua memória, correndo inutilmente contra os golpes do esquecimento, as ausências, e a marca nítida dos algozes que lhe tiraram a vida precocemente.
(Érica-poeta maldita, profetizou-se a si mesma?)
Rugindo das terras submersas, do não-lugar, retornou à superfície através dos olhos endiabrados de Padosan, que reuniu as provocações performativas e audiovisuais, na promíscua e fértil relação entre linguagens durante a cáustica pesquisa. Ambos incansáveis.
Érica-semente, na profusão deste jorro imagético, em golfadas póstumas. Ressuscitou a si mesma, contra todas as probabilidades. E dizem agora que nunca mais voltará a morrer.
Mônica Rodrigues